terça-feira, 28 de janeiro de 2014

O neoliberalismo nos EUA: pobreza, racismo e campos de concentração


Continuação da edição anterior
Vejamos como o governo Clinton aderiu covardemente – abrindo o caminho, inclusive, para a gravíssima crise econômica que explodiu depois - a sua política de apartheid ou campo de concentração, fazendo o Partido Democrata arrastar na lama (Obama não é um acidente) todo o ideário desenvolvido a partir do governo Franklin Delano Roosevelt (1933–1945)
CARLOS LOPES
Pretendíamos reduzir bastante o nosso resumo das observações de Loïc Wacquant, para encerrar sua publicação neste número. Infelizmente, um apagão acometeu a região onde se localiza a nossa redação. Devido a isso, ficamos sem tempo de reduzir o texto (como dizia o padre Antônio Vieira em carta a um amigo, "desculpe-me, pois não tive tempo para ser breve"). Sua última parte será publicada na próxima edição. Em sua palestra na sede do Goldman Sachs, em Nova Iorque, a presidente Dilma afirmou que "a gestão privada é mais eficiente, mais ágil e de menor custo" - referia-se, evidentemente, à gestão privada estrangeira em relação à gestão pública nacional, estatal, pois estava falando para especuladores norte-americanos, oferecendo a eles a infraestrutura do nosso país. Aqui no Brasil, nós já temos grandes exemplos dessa eficiência, agilidade e modicidade da gestão privada estrangeira: a AES Eletropaulo e a Telefónica, por exemplo.
Continuemos, pois, com um exemplo do tratamento que a ditadura neoliberal dos EUA reserva ao povo de seu próprio país:
"O estabelecimento de toques de recolher, visando manter os menores fora das ruas depois do anoitecer, aplicados essencialmente nos hiperguetos e bairros pobres, é emblemático do aumento da propensão do Estado americano para atirar seu arrastão de polícia e punição mais amplo somente naquelas muitas regiões onde está retraindo a sua rede de segurança [social]. Apontando para o aumento de crimes violentos atribuíveis (ou reflexamente atribuídos) a gangs, 59 das 77 maiores cidades do país instituíram tais proibições, metade delas entre 1990 e 1994. Em Chicago, uma portaria municipal proíbe pessoas com menos de 16 anos de ficar na rua sem autorização entre as 22:30h (nos fins de semana, 23:30h) e 6:00. Desde a metade dos anos 90, numerosos estudos constataram que os toques de recolher não têm qualquer efeito supressivo sobre o crime nas ruas ou sobre os delitos juvenis, e, mesmo, tem sérias consequências criminogênicas. O certo é que esses toques de recolher aumentam de modo significativo as chances de encarceramento de jovens residentes nos bairros urbanos pobres. De acordo com dados do FBI, perto de 75.000 jovens foram presos com essa base em 1992, duas vezes mais do que por roubo (excluindo o roubo de carros) nesse ano. A taxa de prisões por atrasos e violações do toque de recolher mais do que dobrou entre 1992 e 1997, quando atingiu o pico de 700 por 100.000 jovens" (v. "Punishing the Poor: The Neoliberal Government of Social Insecurity", Duke University Press Books, Durham and London, 2009, p.68).
CAPITULAÇÃO
Agora, vejamos como o governo Clinton aderiu covardemente – abrindo o caminho, inclusive, para a gravíssima crise econômica que explodiu depois - a essa política de apartheid ou campo de concentração, fazendo o Partido Democrata arrastar na lama (Obama não é um acidente) todo o ideário desenvolvido a partir do governo Franklin Delano Roosevelt (1933–1945):
"A ‘reforma’ do welfare aprovada pelo Congresso dos EUA e sancionada como lei, no meio de fanfarras, por William Jefferson Clinton em agosto de 1996, causou uma grande comoção nos dois lados do Atlântico. Nos Estados Unidos, a decisão do presidente de endossar uma série de medidas preparadas pelo setor mais reacionário do Partido Republicano, jogando na beira da estrada alguns dos avanços sociais mais preciosos doNew Deal e da guerra à pobreza dos anos 60, não poderia deixar de perturbar o establishment democrata e abalar os seus tradicionais aliados. Numerosas vozes se levantaram, mesmo dentro do governo, para denunciar essa inversão política e a renegação que ela implicava" (v. L. Wacquant, "Punishing the Poor: The Neoliberal Government of Social Insecurity", Duke University Press Books, Durham and London, 2009, p. 77).
FALSA REFORMA
"Vários altos funcionários do Departamento de Saúde e Serviços Sociais, entre eles o diretor de seu ramo de pesquisas, pediram demissão em protesto ao que, segundo as projeções de sua equipe, a dita ‘reforma’ causaria: um crescimento significante das dificuldades para a maior parte dos pobres dos EUA, especialmente as crianças (Clinton recusou-se, aliás, a transmitir ao Congresso os resultados de tais estudos, temendo publicidade negativa).
"A presidente do Children’s Defense Fund, uma íntima amiga pessoal dos Clinton, rompeu publicamente com o casal presidencial, chamando a decisão do líder dos ‘Novos Democratas’ de ‘um ultraje’ (v. "Edelman Decries President’s Betrayal of Promise ‘Not to Hurt Children’", New York Times, 31/07/1996).
"Organizações religiosas, sindicatos, políticos, acadêmicos e ativistas dos direitos sociais, condenaram unanimemente a ‘reforma’. Mesmo o senador centrista Daniel Patrick Moynihan, ponta-de-lança da onda anterior de alteração do welfare, que resultou na aprovação do Family Support Act de 1988, denunciou-a como uma segura fórmula para ‘aumentar a pobreza e o descaso’. E seu colega Paul Simon, de longa data um apoiador de Clinton, tocou o sino de alarme de que a assinatura do pacote do welfaremancharia para sempre o legado do presidente.
"Hugh Price, presidente da Urban League, embora conhecido por sua moderação, resumia o ponto de vista das organizações progressistas nos seguintes termos: "Esta lei é uma execração para as mães e as crianças mais vulneráveis da América. Parece que o Congresso cansou-se da guerra contra a pobreza e decidiu fazer em seu lugar uma guerra contra os pobres" ("Welfare hysteria", The New York Times, 5/08/1996, p. A 11).
ASFIXIA
"Mas o debate foi rapidamente abafado por imperativos eleitorais: tinha-se que tomar cuidado para não interferir com a campanha de reeleição do presidente. Clinton não hesitou em usar esta lei como último recurso para chantagear a ala esquerda de seu próprio partido, argumentando essencialmente o seguinte: "calem-se e reconduzam-me à Casa Branca, pois eu sou o único capaz de suavizar os efeitos mais nefastos desta ‘reforma’". Quanto às forças conservadoras do país, elas só podiam comemorar, ao ver o presidente aderir às suas posições e ratificar um texto de lei em todos os pontos similar àquele que ele mesmo havia vetado duas vezes alguns meses antes (antes da abertura da temporada eleitoral). Assim, a United States Chamber of Commerce, principal organização patronal do país, regozijou-se com o fato de o presidente ter reafirmado ‘a ética do trabalho da América’, enquanto Newt Gingrich, líder dos republicanos no Congresso, evocava com lirismo um ‘momento histórico em que trabalhamos juntos para fazer algo de muito bom para a América’.
"Na Europa, e singularmente na França, não faltaram comentaristas, tão apressados quanto mal informados (a coroa ficaria, sem dúvida, com Claude Imbert, por seus editoriais asininos no Le Point), para apresentar tal medida como um avanço corajoso de um presidente ‘de esquerda’, visando a ‘adaptação’ necessária dos sistemas de proteção às novas realidades econômicas. Segundo esta visão, na qual a ignorância das realidades americanas concorre com a má-fé ideológica, Clinton traçaria o caminho a ser seguido pelas sociedades esclerosadas do Velho Mundo. Este seria o preço da eficiência e do sucesso na impiedosa competição econômica mundial" (v. "Punishing the Poor: The Neoliberal Government of Social Insecurity", Duke University Press Books, Durham and London, 2009).
CONTEÚDO
A dita "reforma" dos serviços sociais de Clinton consistia "em abolir o direito à assistência para as crianças mais desfavorecidas e substituí-lo pela obrigatoriedade do salariado desqualificado e subpago para seus pais. Ela afeta apenas um setor menor dos gastos sociais do Estado americano – aqueles voltados para as famílias pobres, os enfermos e os indigentes -, excluindo os programas que beneficiam as classes médias, habitualmente reagrupados sob a denominaçãosocial insurance, por oposição ao termo maldito welfare(N.A: Temos aí um caso particular de "allodoxia" [tomar um conceito por outro] favorecido pela reinterpretação descontrolada – pois, na maior parte dos casos, inconsciente – que um termo do debate sociopolítico sofre ao passar de um quadro nacional a outro. Assim, os observadores europeus traduzem welfare por Estado do bem estar social, o que remete ao conjunto de sistemas de proteção e de transferência social universalista, enquanto os americanos abrigam sob esta denominação apenas os programas categoriais reservados às populações dependentes da caridade de Estado).
"Longe de inovar, essa ‘reforma’ só fez reciclar remédios vindos diretamente da era colonial e que, no passado, já deram provas de sua ineficácia (v. Michael Katz, ‘In the Shadow of the Poorhouse: A Social History of Welfare in America"’ Basic Books, NY, 1996): estabelecer uma demarcação categórica entre pobres ‘merecedores’ e pobres indolentes, empurrar estes últimos, através da coação, para os segmentos inferiores do mercado de trabalho e ‘corrigir’ os comportamentos supostamente desviantes e desviados que seriam a causa da miséria de uns e outros.
"Sob o manto da ‘reforma’, a ‘lei sobre a responsabilidade individual e o trabalho’, de 1996, instaura o dispositivo social mais retrógrado promulgado por um governo democrático no século XX. Sua aprovação confirma e acelera a substituição progressiva de um (semi) Estado do bem estar para um Estado carcerário e policial, no seio do qual a criminalização da marginalidade e a contenção punitiva das categorias deserdadas fazem as vezes de política social" (op. cit.).
CONTA
"O objetivo declarado dessa lei é combater não a pobreza, mas a pretensa dependência das famílias assistidas em relação aos programas sociais, ou seja enxugar os efetivos e os orçamentos dos programas consagrados aos membros mais vulneráveis da sociedade americana: as mulheres e as crianças do proletariado e do subproletariado e secundariamente os velhos sem recursos e os imigrantes recentes.
"De fato, a reforma de 1996 não toca no Medicare, a assistência médica dos assalariados aposentados, nem nas caixas de aposentadoria Social Security, que, no entanto, são as principais fontes de gastos sociais do Estado americano, com 143 e 419 bilhões de dólares respectivamente, em 1994 [N. HP: O Medicare e aSocial Security são, precisamente, o objetivo dos cortes – isto é, da infame "reforma" - de Obama].
"[A "reforma" de Clinton] atingiu exclusivamente os programas reservados aos mais pobres, o Aid to Families with Dependent Children (AFDC), oSupplemental Security Income (SSI, que atende idosos indigentes e enfermos) e os tíquetes de alimentação (food stamps). Estes programas cobriam apenas uma fração da população oficialmente classificada como pobre: 39 milhões de americanos viviam abaixo do "limiar federal de pobreza", mas menos de 14 milhões (dos quais 9 milhões são crianças) recebiam a verba AFDC (US$ 15 mil por ano – ou US$ 1.250 por mês - para uma família de quatro pessoas). Em 1992, 43% das famílias pobres recebiam alguma ajuda pecuniária, 51% cupons alimentares e apenas 18% se beneficiavam de um auxílio-moradia.
"São os beneficiários da AFDC e dos food stampsque pagaram a conta da "reforma", embora estes programas sejam dez vezes menos custosos que aqueles reservados às classes médias, com 22 bilhões anuais para a AFDC (contabilizando gastos federais e locais juntos) e 23 bilhões para a assistência alimentar. Pois a "lei sobre a responsabilidade individual e o trabalho" prevê a economia de 56 bilhões de dólares em cinco anos, reduzindo o montante das verbas, colocando um teto para sua distribuição e excluindo de seu campo milhões de pessoas com direito a elas – das quais uma maioria de crianças e de pessoas idosas sem recursos.
"Estas medidas draconianas são populares junto ao eleitorado – das classes médias brancas – porque o setor do welfare é percebido essencialmente como beneficiador dos negros. Não importa se a maioria desses beneficiários AFDC são de origem europeia (39% dos beneficiários AFDC são brancos, 37% são afro-americanos e 18% latinos), a ideia fixa continua a ser que a assistência aos pobres só serve para manter na ociosidade e no vício os habitantes do gueto, nos quais encorajaria os "comportamentos antissociais" que o termo meio erudito, meio jornalístico underclass denota ou denuncia. A associação estreita entre assistência social e cor da pele torna os programas particularmente vulneráveis no plano político. Ela permite mobilizar contra este setor do Estado caritativo a força dos estereótipos raciais e dos preconceitos de classe que, ao se combinarem, fazem do pobre do gueto um parasita social, quiçá um verdadeiro "inimigo" da sociedade americana (N.A.: A dimensão racial da "reforma" dos auxílios sociais, fortemente eufemizada, mas onipresente no debate político americano, passou completamente despercebida dos comentaristas europeus).
ABERRAÇÕES
"A justificativa para os cortes brutais é que a assistência social é excessivamente generosa, que ela solapava a vontade de trabalhar de seus beneficiários e que ela sustenta uma ‘cultura de dependência’ tão nociva para os interessados quanto para o país e que essa cultura, por sua vez, explica o aumento dos nascimentos fora do casamento e a sequência de caracteres patológicos que supostamente vêm com eles.
"No debate da ‘reforma’ de 1996, quatro figuras racializadas foram juntadas para oferecer encarnações vivas da dependência e de suas consequências corrosivas: 1) a "rainha do welfare", uma astuta e fecunda matriarca negra que foge do emprego, trapaceia a burocracia da assistência pública e gasta seu alto cheque da assistência em drogas e bebidas, deixando seus muitos filhos em terrível negligência; 2)a mãe adolescente afro-americana, um "bebê tendo bebês", cuja imaturidade só é igualada por sua depravação moral e sexualidade devassa; 3) o "pai ausente" de classe baixa, geralmente negro e desempregado, que engravida mulheres a torto e a direito para levianamente abandoná-las, e a seus filhos, aos cuidados dos contribuintes; 4) e o idoso imigrante do Terceiro Mundo que se esgueira para dentro dos EUA com o objetivo de manipular o welfare e obter, gratuitamente, uma aposentadoria de alta classe.

"Esse quarteto caricatural, orquestrado por um fluxo interminável de informes jornalísticos, políticos e acadêmicos, foi apresentado como a prova viva da natureza fundamentalmente corruptora da assistência pública. O obsessivo foco sobre essas quatro figuras, lideradas pela escandalosa ‘rainha do welfare’, era tão manipulatório que ofuscava o fato de que os beneficiários do AFDC eram, na maioria esmagadora,crianças e não adultos (8,8 milhões contra 3,9 milhões em 1996). Isto significava que as consequências negativas da reforma do welfare seriam suportadas, não por estroinas que esquivavam-se de seus deveres morais, mas principalmente por menores que não podiam ser responsáveis diante das normas de trabalho, sexualidade e matrimônio (ou pagar pelo suposto erro de conduta dos seus pais)".

Fonte: Hora do Povo

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